terça-feira, 24 de julho de 2012

E São João apronta outra vez

A campanhia da porta toca. Ela deixa a porta do forno aberta e vai atender a porta: Surpresa! "Você? A última pessoa que achei que apareceria aqui hoje."
Sai correndo, nem fala direito com ele, porque o forno esta aberto e o pernil esperando para ser virado.
Vira a carne e volta  para pedir desculpas por não lhe ter cumprimentado direito, na verdade foi a surpresa que não lhe deixou falar.  O que ele estaria fazendo ali em pleno São João? Não achou nenhum programa, por certo, então a última opção: ela. Todavia,  mesmo assim,  se surpreende com a sua chegada, até porque, imediatamente, lembra do ano anterior, quando em situação diversa, em lugar distante, teve, a mesma companhia, como sempre bem partilhada, mas o certo é que ele estava lá.
Ele já entra perguntando:   - Cadê o amendoim, milho, licor, não tem nada nesta casa?
 Ela apenas responde: -  não, não tem nada, não estou esperando niguém, portanto nao comprei nada, o pernil é para meu  irmão que pediu para  fazer.
- Não é possível,  tem algumas pessoas que vem para cá, vou sair e comprar ao menos amendoim.
Sai para procurar o amendoim e  de repente  volta com alguns sacos na mão. Traz garrafas de vinho, ambos gostam e muito, e um coisa que eles também gostam muito e que é uma tradição  nas festas juninas e natalinas, um queijo cuia, que ele, como sempre fez, vai abrir e limpar a gordura com todo cuidado; esta era uma das suas obrigações quando viviam juntos. Ele limpa cuidadosamenteo o queijo,  coloca-o num prato e  parte ao meio, parece a mesma rotina de sempre, nada mudou pensa ela, que apenas ri e comenta: -  Vocês, a qualquer momento, vão me colocar no hospício, acho que to ficando maluca, ou melhor, vocês estão  querendo colocar-me doida e estão conseguindo.
Ele sai para comprar o amendoim e volta,não só com o amendoim, como também com a cerveja. As cervejas de latinha que ela tem na geladeira não prestam  para os seus amigos, quer dizer, os dele.
É como se estivesse em casa,  abre o freezer e vai tirando coisas do lugar para abrir espaço para a cerveja, arruma tudo e, como de costume, diz que vai na rua ver os velhos amigos. Ela já conhece, nem diz nada, já sabe  que  esta  ida a rua só acabará bem mais tarde. Não se importa mais, ri para si própria, comenta: -  Tudo igual, parece que o tempo parou.É como se nada tivesse sido interrompido, mas já se passaram longos sete ou oito anos.
Ela não sabe se está alegre ou triste, não consegue definir o que sente, porque talvez nem sinta, já se acostumou com estas idas e vindas, estas aparições inexplicáveis, que lhe deixam aflita, porque nas as entende.
Já pediu tantas vezes para que ele se afaste, mas ele parece não entender, deve sentir prazer em deixá-la assim, ansiosa, aflita, despirocada. Ela não gosta da situação, odeia não saber onde pisa, não gosta de campos minados, e ele é um campo minado mesmo, ela nunca sabe o que pode acontecer, o que ele vai fazer, qual é o próximo passo.  Ele joga bem, quer mantê-la ali, embora de uma outra maneira. Ela não entende e não quer isto, é daquelas que gosta  de estar segura, tem pés no chão para muitas coisas, e  nas questões do  relacionamento mais ainda. Odeia não saber o que fazer, como agir, o que querem com ela. Não gosta da incerteza, de não saber a pretensão do Outro.
Preferia estar sozinha, já está acostumada,  mas São João lhe quer pregar mais  uma peça e, mais uma vez, faz ele aparecer no seu dia. Quem será o mais insensível, o santo ou o pecador? Será que ambos não notam que não fazem nenhum bem para ela? O Santo está em débito para com ela:  há alguns anos atrás, neste mesmo dia, lhe tirou alguém com quem pensou que talvez pudesse ter uma vida diferente, calma, tranquila, alguém que lhe reacendeu  a esperança  de viver um grande e imenso amor, tudo prometia e se encaminhava para isto, mas São João, surpreendetemente, não permitiu que isto acontecesse e levou para junto de si a sua esperança, deixando-a atonita, incredula, triste e solitária.
Depois,  ainda  possivelmente para  resgastar  o mal praticado, leva para o outro lado, desta vez do Atlântico, ele que, de uma maneira ou de outra, lhe fez muito feliz, afinal estava ali sozinha e vê uma pessoa amiga; uma não,  quatro,  porque ele estava acompanhado  dos próprios amigos, que terminam sendo aceitos por ela. Passam juntos o dia, felizes relembram coisas,  amigos, o próprio passado, enfim, se divertem e ficam bem, mas nada além disto.
Agora, outra vez, no dia do santo ele apronta outra, e ele está aqui no seu portão, aliás,  entrou porta dentro lhe tirando a paz, fazendo esquentar o que ja estava  há muito tempo morno, quase  frio.
Ela ainda pensa que ele está de passagem, que tá indo para algum lugar  perto da sua casa e por isso mesmo passou ali, mas não, ele volta, informa que vai ficar, que vai dormir.  Ela continua sem entender nada,mas  apronta a cama onde ele irá dormir, a que um dia fora a “cama do casal”. Arruma tudo  e dorme na sua, a de sempre, a de solteiro.  Vão para a rua, dançam, bebem, se divertem, voltam e cada um para o seu leito. Sozinha ela pensa:
“ Meu Deus, que coisa mais  sem graça, esqusita , ele tá ali, mas ela não faz nada, apenas  questiona São João: Por que mais esta surpresa? Você não vê que eu não seguro esta onda?  Você é um santo ou um filha da mãe?  Qual o motivo que você tem para me sacanear também?   Você está me dando traques de massa,  coisas morninhas, sem perigo aparente, e eu prefiro, mesmo correndo riscos, uma bomba, de preferência um foguete, uma espada, até uma  dinamite, porque ela  faz explodir, ou implodir tudo, mas com resultados imediatos, que é o que me interessa agora, afinal já não sou nenhuma menina, e ele, tampouco”.
 Adormece e, no outro dia pela manhã, pensa que tinha sonhado, mas percebe, perfeitamente, que não foi um sonho, ele tá ali em carne e osso, e ainda lhe perguntando se  ela quer andar.
Diz que não; não vai fazer isto consigo própria, não vai alimentar  qualquer ilusão, não vai deliberadamente se machucar, de maneira alguma, fica em casa curtindo a ressaca e tentando pensar como agir, o que fazer, aquela proximidade por certo não lhe fará bem, ela já sabe qual vai ser o final:ele saindo porta afora e ela sozinha. Ele  entra no carro, bate a porta e vai para o mundo onde vive e onde quer viver e estar, sem  a participação dela, que ficará, como sempre, só e questionando o santo das fogueiras, que agora resolveu, na véspera do seu dia, fazê-la ferver, para no dia seguinte lhe dar um banho gelado, fazendo com que ela volte à sua realidade, que é a de estar só e esperar um próximo São João, para saber  se vai tocar adrianino, traque de massa, ou foguetes comemorando uma nova vida, quem sabe, não tão solitária e sem maiores surpresas. 

domingo, 1 de julho de 2012

As Legítimas


A minha era de tiras amarelas, aliás, eu acho que antigamente todas elas eram amarelas ou talvez verdes, não sei, eram de tiras bem mais grossas que as atuais e tinham um solado também muito grosso, bem diferente do de hoje. Todos nós, lá em casa, tínhamos uma e ela tinha de durar muito tempo, ficavam finas no calcanhar e embaixo do dedão. Se quebravam as tiras ou os pinos que seguravam as tiras ao solado era uma merda, porque não podíamos comprar outras, então o negócio era improvisar. Usei muitas vezes a minha com grampos enfiados na tira para que esta se sustentasse no solado; o diabo era quando, por algum motivo, o grampo, ou o material que fosse, resolvia enganchar em alguma coisa, ou então, se envergar e sair com tira e tudo pelo buraco e terminava por machucar o pé.
Antes era usada apenas para ficar em casa, quando muito ir até a praia, depois ela foi evoluindo. Lá em casa ela servia para muitas coisas, desde a sua função primordial que era proteger os pés, até de substituição ao cinto. Já tomei grandes sandalhadas, até eu mesma, na única vez que dei  uma palmada em meu filho, o fiz com ela,  fui tão violenta que os gominhos da miserável ficaram na perna da  criança.
Lá em casa éramos muito, e de diversas idades e tamanhos, e, consequentemente, os nossos calçados eram de tamanho diversos, o que não impedia que, como todo pé de pobre, calcássemos o sapato uns dos outros. Pé de pobre é eclético mesmo: se você usa 36 e tem de ir a uma festa e sua melhor amiga, ou a sua irmã mais velha, ou ainda algum parente, tinha um sapato 35 ou 37 até 39, você usava qualquer um, depois ficava com os pés lenhados; se o numero fosse menor, ele ficava cheio de bolhas de água que se solidificam e viravam quase ossos: o meu calcanhar que o diga! Se os sapatos são maiores, apesar de não apertarem  como é lógico, fazem pior: formam calos da mesma maneira, porque o roçar do pé entrando e saindo do sapato,  fere a pele sensível dos pés, e o resultado é desastroso, depois você tem que segurar o sapato com o rosto do pé, se o desgraçado é alto, aí é que a porra pega, porque você tem de segurar ele para ele não sair do pé e equilibrar-se em cima do miserável, resultado, dor  em todas as partes do corpo, não pensem que é só no pé; a panturrilha, coitadinha, fica em frangalhos, acho que tenho a  minha bem grossa mesmo devido a este exercício praticado muitas vezes na juventude. Lembro que na minha formatura usei uma sandália de uma amiga minha cujo número era 38, e como era aberta eu tinha o tempo todo de estar ajeitando o pé para diminuir o espaço entre os dedos e o começo da sandália, que sempre tava sobrando.
Pois é, os sapatos lá em casa também podiam passar de pai para filhos, ou de irmão para irmãos e aí, outro problema, você pegava o bicho já todo arregaçado e com chulé (ou será xulé? Em qualquer uma das grafias, a primeira é a correta, vai feder) e era obrigado a calçar aquela porcaria, não tinha outra maneira.  E quando  os parentes mais ricos resolviam fazer doações e davam sapatos lindos, mas que não cabiam nos nossos pés, ou se coubessem, também causavam danos, porque não estávamos acostumados; as mulheres a usar sapatos  de saltinho e de bico finíssimo, e os homens  sapatos sem cadarço.
Lembro-me do meu “vulcabrás colegial” que, juntamente com a blusa “volta ao mundo”, tinham que acompanhar o meu crescimento, porque eles tinham de durar,  minimamente, um ano; o sapato, pelo gosto de minha mãe, deveria  durar eternamente,  acho que ela pensava que tiraríamos o ginásio com ele.  O “vulcabrás”, no último ano do meu curso, já tinha promissores furos, que deixavam em liberdade limitada alguns dedos, o mindinho quase totalmente de fora, na altura tínhamos de usar meia preta para disfarçar. O solado! Ah o solado!  Não podíamos  suspender os pés de maneira alguma, para que ninguém  observasse os buracos na sola. Todavia os heroicos sapatos “vulcabrás” não me deixaram ter os pés arrebentados nas quadras de vôlei e de outros esportes na escola, que eram quadras rugosas, quando a gente caia na quadra se ralava toda, tomei muitas broncas por ter rasgado “n” vezes a minha fedorenta “volta ao mundo”. Oh paninho miserável! A gente suava e o suor impregnava a porrra da blusa, e olhe que não adiantava lavar, porque o cheiro horrível daquele tecido era mesmo uma porcaria. E a mancha que se formava embaixo do braço! Que miséria! A gente ficando mocinha, eu e a minha irmã, sem dinheiro para o desodorante ou perfume, e aquela blusa horrorosa, mal cheirosa, ali, acompanhando a nossa vida por longos 4 anos.
Bom mas tudo isto passou, não sei se existe mais o tecido da blusa “volta ao mundo”, deve existir até coisa bem pior, os sintéticos estão aí; também não sei se ainda existe o sapato vulcabrás, certamente há alguma zorra similar feita na China, mas as “legítimas” são imbatíveis. Agora tenho de todas as cores, dourada, azul de vários tons, verde, branca, bege, ainda compro um lilás, acho linda, vários desenhos na sola, com tiras no calcanhar, com tiras enviesadas, com tiras no dedinho, enfim, elas evoluíram, estão mais delicadas e agora já vão para qualquer lugar, aliás, virou uma epidemia, uma moda de jovens e velhos e bebês, adoro ver criancinhas com as sandálias pequeninas, acho interessante como eles conseguem segurá-las nos pés.
Tem algumas pessoas, entretanto, que nunca deveriam calça-las, porque não sabem andar com elas; meu pai era uma dessas pessoas, como não sabia andar com a sandália, para segurá-la nos pés, ele colocava todos os dedos bem para frente, resultado, um caos, os dedos ficavam passando do solado e arrastando no chão, uma coisa mesmo feia. Um dia meu pai, que era um espanhol daqueles meio brabos, resolveu que ia pegar eu e o meu irmão para dar uma sova, para evitarmos isto subimos numa árvore e ele foi atrás, resultado: ele não tirou a sandália e tomou uma queda da porra. Conclusão: a surra foi bem maior quando descemos da árvore, a raiva tinha crescido com a queda.
Minha mãe, por outro lado, nunca usou uma sandália desta, nunca mesmo, ela não gostava de sandália que ela identificava como “de pauzinho no dedo”.
Já perceberam do que eu estou falando não é? É da “legítima havaiana” que me acompanha, aproximadamente, há uns 48 anos, e é tão famosa e internacional agora, que da última vez que entrei em Portugal o homem da fiscalização abriu minha mala e me perguntou quantas “havaianas” eu estava levando, pensem aí!  Eu descaminhando havaianas!!!!!!
Um aviso, não tenha imitações, comprem as “legítimas”.