quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Ressaca canina

A festa estava preparada, tudo arrumado, cerveja gelada, mesas com toalhas e arranjos no centro, garçons, barman, músicos. Os convidados começam a chegar, procuram mesas que tenham pessoas conhecidas, alguns ficam em pé encostados na parede, os mais jovens, claro, que nesta estratégica posição ficam de olho nas donzelas, que já começam a mostrar as suas qualidades: shorts curtos, blusas soltas bem decotadas nas costas, sandálias altas, quase nem conseguem andar direito, mas fazem charme e andam para lá e para cá, oferecendo a mercadoria. Quase todas mostram o resultado da “malhação” quase diária, pois as pernas musculadas se amostram, os cabelos, invariavelmente lisos e louros, estão sempre soltos e alcançam o meio das costas, virou uma epidemia este tipo. Quase sempre estão fazendo bicos, e enrolam os cabelos uma das mãos, para, um segundo depois, soltá-los. Um leve movimento para os lados para os cabelos caírem e, num gesto teatral, voltarem ao “status quo ante” com uma técnica dos dois dedos colocados em arcos pegando dois lados. O sorriso parece constante, mas tem de ter técnica para sorrir e tirar fotos sorrindo. Não se deve sorrir com a cabeça dura, ela tem de pender para um lado e os dentes tem de aparecer até quase os caninos. 

A voz, ah a voz! Esta sim um padrão “idiota”, um misto de sotaque carioca com uma vontade de não se fazer mesmo entender: um som horrível, mas que, para elas, parece ser sexy. Terrível.


Ela estava só naquela confusão e, por isso mesmo, podia observar tudo isto.  Todos já tinham começado a beber. O som já se fazia ouvir, aliás, impossível disputar com ele alguma conversa com outrem, ele reinava soberano. Para ela aquilo era horrível, mas parece que todos que ali estavam, em sua grande maioria jovens, curtiam o som, pois ficavam se embalançando todo o tempo, embora alguns parecessem que estavam tendo algum espasmo. A variedade ficava por conta do “DJ”- arrocha, funk, tecno, a garantia era mesmo da altura.


Não tivera saída para descartar o convite, era amiga dos pais do aniversariante, fora convidada para o niver, e jamais faria uma desfeita destas, mesmo sabendo tudo o que iria rolar.

Começa a perceber que todos nunca bebem toda a cerveja que está na latinha, ao primeiro sinal de que ela esta esquentando, o que está na lata vai para o chão, ou fica na própria lata em cima da mesa ou nos cantos das paredes, ou ainda em lugares menos adequados, mesmo com a recolha que os garçons fazem a todo o momento e ela pensa: “Estes filhos da mãe não tem pena do dinheiro dos outros, pois se tivessem, ao menos, dividiam a cerveja com outras pessoas, e não jogariam fora a lata quase cheia.” 

De repente observa o cachorro da casa, vê que ele, como é bem manso e lindo, circula pela casa, é mais um convidado da festa. Acompanha o passeio do bicho por entre as pessoas e mesas e nota que ele lambe muito a grama, acha estranho e fica observando.

Mata a charada quando nota um rapaz despejando um resto de cerveja no chão, e vê que o cachorro vai direito para o lugar em que o líquido foi despejado e começa a lamber, vigorosamente, a grama que ficou molhada de cerveja. Acha muito estranho mesmo, mas não faz nada.

A festa decorre tranquilamente, em princípio todos estão muito educados e contidos, afinal a bebida ainda não tinha feito o efeito.

O cachorro grande, lindo, todo branco,(quase albino) continua circulando e lambendo toda a cerveja que cai no chão, o que aconteceu durante toda a festa. Em dado momento ela vê o cachorro andando e cambaleando, não acredita no que vê, o cachorro parecia não conseguir andar em linha reta. De repente vê o animal olhar para cima e para os lados, como se estivesse achando estranho o que ali se passava, ato continuo o cachorro cai e fica deitado sem condição de levantar; quando consegue, dá dois passos cambaleantes e cai de novo. Olha para os olhos do cachorro e vê que eles não estão normais, estão vermelhos.

Fica ali analisando o cachorro e de repente: KKKKKkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk o cachorro ficou bêbado! Nunca vira isto antes, bicho bêbado só no Natal.quando o peru  do jantar natalino é embriagado antes de morrer, isto é: antes de ser assassinado. O peru fica embriagado no último dia de sua vida, parece coisa de realizar o último desejo.

O cachorro ébrio, depois de muito rodar, e muito lamber a grama encharcada de cerveja, visivelmente embriagado, some.

A festa continua, mas tinha hora certa para acabar, o que aconteceria as 10h00min da noite, pois era uma festa em uma casa dentro de um condomínio e tinha começado ao meio dia.

Acabada a festa, todos, bêbados ou não, tem de ir embora. Ela não, ela ficaria para dormir na casa dos amigos, e foi que fez. Como tem hábito de acordar cedo; logo cedo, no dia seguinte, desceu e foi ficar à beira da piscina. De onde estava via o canil do cachorro e vê que ele está lá deitado, largado, “escornado” seria a palavra certa. De repente vê ele levantar-se e  tentar dar uma volta, mas não consegue, parece estar enjoado, bebe água e volta a deitar-se, para, pouco tempo depois, tornar a levantar e sair do canil para vomitar. Isto aconteceu durante todo o dia, pelo menos, até o horário em que ela deixou a casa dos amigos para ir para a sua.

Pela primeira vez na vida ela presenciou um pileque de cachorro e a ressaca fenomenal do animal. Pois é: assim como são os homens, são as criaturas! Se beber demais, vai ter ressaca na certa.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

A rosa fossilizada

Abre o livro de  Elikia M´Bokolo – África Negra História e Civilizações, Tomo I. Uma rosa seca, que um dia já foi fresca, linda e vermelha, cai do livro. Olha para aquele fóssil de rosa e procura lembrar-se como ele foi sedimentar-se ali. A mente lhe faz retornar a um tempo em que quem lhe deu a rosa ainda transitava num nível físico, material, podia sentir e fazer alguém sentir, tanto que por sentir, lhe fez sentir o que é a sensação de receber uma rosa de alguém que, para muitos, seria incapaz de um mínimo gesto de carinho.Não que ela nunca tivesse recebidos rosas, já as recebeu até de desconhecidos, mas aquela rosa era muito especial. 
Sim, aquele homem que tinha aparência rude, embora bonito, machão, até mesmo grosseiro, lhe dera uma rosa, sem qualquer motivo especial, apenas lhe dera aquela rosa vermelha comprada a um indiano que, no seu santo ofício, ganha a vida vendendo rosas e dando a oportunidade às pessoas de, através delas, dizerem o que as palavras não permitem, seja por timidez, seja por falta de coragem mesmo, seja no caso, pelo próprio “machismo”, que não aceitaria e nem permitiria que um seu membro ativo tivesse a fraqueza de, numa demonstração de amor e carinho, dar uma rosa a uma mulher. Mulher, para estes digníssimos representantes do machismo universal, é objeto de consumo, utilidade doméstica, que deve servir a todo o momento àquele que lhe paga a casa, comida, e lhe enche de prazer de ser mãe, porque sexo para ela, na verdade, só tem esta finalidade, porque prazer mesmo quem tem de sentir são eles, os “machos”. 
Bom mas não interessa esta estória de “machismo”. O que importa é o gesto, o momento, a emoção de receber aquela rosa, que hoje, fossilizada, encontra-se na pg. 409 do livro citado.
A seiva da rosa manchou as páginas do livro, desde a 393 até 437.  O papel lhe sugou todas as suas forças, filtrou a sua seiva e impregnou-se dela, roubando-lhe todo o frescor, toda a sua beleza, embora não tenha sabido fazer direito, pois não aproveitou para impregnar-se do seu cheiro e nem da sua delicadeza, mas sedimentou a prova da existência de um amor.
            Certamente o papel sugou a vida da rosa para amenizar o assunto que as suas páginas tratavam, possivelmente para amenizar o impacto das palavras ali contidas, pois o texto fala de escravidão, da exploração dos negros, da contribuição destes seres humanos para a economia das grandes potências colonizadoras, que lhes retirava o direito mais primário, o de ser mesmo “um ser humano”.
            Desliga-se do texto, o seu pensamento voa. Sente saudades. Muitas mesmo; lembra das mãos grossas e grandes, mas que sabiam trabalhar o seu corpo, lembra dos afagos no rosto, feitos por quem nunca os tivera feito antes. Um machão como ele não poderia ter uma reação desta, quanto pior, na presença de olhares estranhos.
Lembra de lágrimas escorrendo por aquele rosto lindo, porém duro e marcado pela vida, ao perceber que estava apaixonado de verdade, que aquilo tudo era diferente do que já existira antes, e certamente, do que viria depois, porque depois ele já seria capaz de amar e saber distinguir o que amor por outra pessoa, de toda a vontade carnal.  Sim aquele homem chorava diante de alguém que, incrédula, via no tremor das mãos, nos olhos negros e penetrantes o brilho das lágrimas misturado com o brilho do olhar de quem ama mesmo e que os olhos traidores demonstram.
Sem dúvida um momento mágico, tanto para ele, quanto para ela. Para ela pelo fato de que, após tantos anos, quando já achava que jamais seria capaz de se interessar por alguém ou se tornar objeto do interesse de outrem, tudo acontecera da mais natural maneira do mundo, e ela se pega apaixonada, achando que a felicidade poderia retornar, ser alcançada outra vez, ao lado de um homem.  Ela sabia que poderia alcançar a felicidade de diversas maneiras, e efetivamente teve muitos momentos felizes, suas realizações pessoais lhe traziam muita felicidade mesmo. As superações de tudo, a sua maneira de se colocar diante de alguns problemas, as suas vitórias; realmente ela tinha muitos motivos para ser feliz, mas o que ela queria mesmo era esta felicidade de se saber, como já acontecera antes, amada por um homem. Queria ser afagada, ser protegida, ser querida. Queria tomar um vinho tinto, sentada e conversando com alguém, fosse deitada com a cabeça recostada no peito de alguém, tendo os seus cabelos afagados, o corpo tocado, fosse sentada em uma mesa de algum restaurante, ou mesmo no sofá de casa conversando banalidades, planejando coisas, viagens, uma casa nova, férias na praia, encontrando soluções para problemas, enfim, queria ter uma companhia.  Sim isto era bom e ela queria muito mesmo, para ela isto era um caminho para a felicidade, esta felicidade que se divide com alguém que se ama muito e por quem se sabe amada.
Chegou mesmo muito perto disto, teve a sensação que os seus sonhos se realizariam com aquele homem rude, grosseiro, que não era capaz de grandes gestos afetivos, mas que sabia alisar o seu rosto, os seus cabelos, o seu corpo. Um homem que um dia com as mãos fortemente agarradas ao volante do carro gritou: “Eu te amo Se é isto que eu to sentindo é que é amor, eu te amo.” Sim, ela teve de acreditar, e acreditou tanto que terminou por se apaixonar e por querer viver intensamente uma historia de amor com este homem, uma história que foi interrompida pela vida, que falhou no momento em que ela resolveu se dar mais uma chance de encontrar esta felicidade que andava, e anda, a procura, e que a vida, de todas as maneiras, insistentemente, procura lhe retirar sempre que ela pensa que chegou a hora.
Pois é, como o fóssil da rosa que se encontra na página do livro, sem qualquer seiva, sem mais cheiro, sem vida, ele também já não tem mais vida, não pertence mais ao mundo físico. Ela já não pode sentir o seu calor, o seu cheiro, os seus carinhos; já não pode ouvir a sua voz, nem sentir o seu olhar, que a todo o momento insistia em lhe dizer o que, muitas vezes, as palavras não exprimiram: EU TE AMO. 

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O escritório móvel

-“Cadê o celular?  Onde larguei? Temos de voltar para casa”.
O marido olhava a sua agonia, a sua aflição procurando na bolsa, que ele chama de “ escritório móvel”,  o celular.
Sorrindo, ironicamente, deixava que ela ficasse cada hora mais aflita: tira maquiagem, tira óculos de grau, tira chaves da casa, tira máquina fotografica, carteira de cédulas, documentos, enfim, o escritório movel  tá todo remexido, mudou-se passou para o banco do carro e nada de celular.
De repente o som do tema de Lara: ela arregala os olhos: O celular tocou! Tá qui, sente o bicho vibrar na sua mão. Se aborrece tanto que desliga o telefone.
Volta-se para o marido:  - “Você é um sacana; estava vendo o tempo todo que o celular estava na minha mão e nem para dizer nada”!
Ele quase sem fala de tanto rir, não diz nada, continua a dirigir o carro,  e a cantarolar o tema de Lara.
Ela está retada, liga para a mãe, diz que  o marido aprontou uma  daquelas e ela tá muito ruim, O marido continua sorrindo, nao diz nada, só não pode é olhar na sua direção, porque a vontade é somente de rir.
Outra ligação, agora quem será?
A filha. Ela diz a mesma coisa: seu pai tá me sacaneando mesmo,  fala alto, está visivelmente transtornada. A filha, do outro lado, pergunta o que aconteceu, é o que ele deduz, porque ela começa a falar que  ele deixou ela tirar tudo da bolsa “escritório móvel”  procurando o celular, caindo de saber que o aparelho estava em sua mãoe que ela não estava percebendo.
A filha do outro lado tem uma acesso de riso, ela se aborrece e desliga o telefone sem se despedir.
O telefone recomeça a tocar, mas ela nem olha, sabe que é a filha que retorna  a ligação.
A menina vendo que ela não ia atender liga para o pai.
- “Pái, o que você fez a mainha”
Ele diz:  - “ Nada, ela tá cada vez pior, não é que queria que eu voltasse para casa para apanhar o celular, que estava na mão dela, ainda bem que voce ligou, porque assim ela percebeu que o aparelho estava na mão.
Os dois se pipocam de rir outra vez.
Ela percebe que eles estão gozando com o acontecido.  Fecha  a cara e fica toda amuada. Pensa: - "Que porra que eu vim fazer aqui hoje, podia ter ficado em casa e nao tomava esta gozação, pior ainda, vou ter que aturar pessoas chatas em casa de desconhecidos, isto não vai terminar bem.”
Chegam na casa de uma pessoa conhecida do seu marido, ela não conhece a mulher que vai recepcioná-la à porta, mas tem uma grande curiosidade de conhecê-la, até porque quem lhe falou muito bem da pessoa foi a sua própria mãe. Todavia o caso do telefone ainda  provoca raiva e ela não consegue disfarçar direito.
Toma um susto, a pessoa é mesmo bem diferente e ela se apressa em dizer:  -  “Eu estava louca para lhe conhecer, sou filha de  Mariana, e ela fala muito bem de você, diz que uma das suas grandes virtudes é a sinceridade”
A anfitriã toma um susto, e ela percebe que os pelos dos braços da mulher  ficam eriçados. A mulher fica visivelmente emocionada com a pronúncia do nome da mãe dela. Decididamente o mundo é muito pequeno, pensa e verbaliza: -  “O babado ali é forte”, ambas sabem, ela e a anfitriã, a causa do comentário.
Fica melhor, a pessoa é simpatica e tem algo em comum; a África. Ambas, embora com objetivos diversos, estudam  aquele continente. Conversa um pouco com as mulheres, parece um clube da Luluzinha, ja não gosta disto, mas fica ali, o papo é  bom. Fala do amigo comum a ambas, e comenta a solidão daquela pessoa, e ouve a dona da casa dizer que  aquilo era uma opção de vida e que o amigo comum  esta levando a vida que sempre quis levar.
O dia vai passando, a comida é boa, variada, ela vai esquecendo a estoria do telefone, mas há alguém que não esquece e, de repente, vê o marido contando a todos o que acontecera.
Sorri, porque contado pelo marido com toda a mise-en-scène, incluindo os ruídos, é mesmo muito engraçado. Todos riem muito da estória e ele percebe, realmente, a sua própria infantilidade em se aborrecer com o acontecido; pensa que tá mesmo muito doida, muito preocupada com alguma coisa, porque não se explica tamanho desligamento. E se o telefone não tivesse tocado? Quando é que ela ia perceber  que o aparelho estava na sua mão? Realmente precisa ter mais concentração, atenção,não pode deixar que  as coisas lhe afetem tanto.
Ri, acha engraçado a estória  contada por quem tanto lhe quer  bem  e que faz com que um fato preocupante  torne-se, apenas, uma grande e interessante piada.
Há uma rede por perto, deita-se nela, deixa que todos se divirtam às suas custas. Dorme, tem esta extrema facilidade de dormir em qualquer lugar,  mesmo com a zoada de pessoas falando  junto a si, mas o tel está, por via das dúvidas, outra vez, na sua mão.