sexta-feira, 29 de julho de 2011

Dr.Cinquentinha

A primeira vez que fui para aquelas plagas, o fiz por dever profissional, até porque ir para aquela cidade do interior, no extremo sul da Bahia, por prazer era impossível: primeiro a distância, segundo a rima não muito rica do nome já deixa antever o que ela é mesmo, uma cidade feia, limitada com outras tantas cidades feias e violentas: Eunapólis, Teixeira de Freitas, e ainda muito próxima aos Estados de Espírito Santo e Minas Gerais, que despejam milhares de pessoas por este interior da Bahia, umas boas, outras muito más.
Bom, mas não comecei isto para falar da cidade e nem das suas fronteiras, nem mesmo, do povo. Estou fazendo o texto para falar de uma grande figura que conheci neste lugar tão esquisito, que faz a gente duvidar que abrigue uma pessoa como esta de quem estou a falar. Ela vive ali, curtindo e sendo feliz. Somente por isto já se vê que estou a falar de uma pessoa para lá de especial.

Inconfundível, diria eu, especialmente diferente, singular e plural ao mesmo tempo, singular pela sua própria inconfundibilidade, plural pela sua grande alma, que aceita a todos e tudo com uma naturalidade invejável.  

Não vê ele defeitos nas pessoas, esses são virtudes mal encaradas, motivo de muitas gozações, de muitos risos, mas de nenhuma crítica. As pessoas são aceitas como elas são, e elas chegam e saem da sua vida dessa maneira, embora todos os que conheci, e que não saíram da sua vida, apenas se afastaram, tenham por esta figura um grande e imenso carinho.

Mas, deixem-me dizer-lhes como conheci este “ser” especial: fui convocada para trabalhar na cidade da rima rica.  Estava acabando de assumir um cargo importante na minha terra, muito importante para muitos; para mim, uma profissão com um pouco mais de responsabilidade de que as demais, porque você trabalhava a vida dos outros, não como o faz o médico, mas de uma outra forma que pode deixar muitas marcas, pois você pode acabar com a vida de uma das partes envolvidas na relação, que também podem acabar com a sua.

Mas isto também não interessa! O fato é que fui trabalhar naquela cidade de muitas ladeiras e de hotéis com portas curtas, isto é; portas que não chegam até o chão, resultando que fica um vão entre a porta e o chão,  e às vezes, também, na parte de cima, o que dá para perceber o movimento do quarto e ouvir tudo o que se passa, seja no corredor, seja nos demais quartos, seja na recepção; enfim, participa-se de tudo, uma hospedaria mesmo, em que os hóspedes terminam ficando tão íntimos que, mesmo sem conhecer um ao outro, podem contar toda a vida de cada um a outrem. Imaginem que beleza!

A viagem de Salvador para a cidade da rima rica dura 12 horas, num belo ônibus leito, do qual um dia tive saudade quando, em 1990, fui pela primeira vez a Europa num avião mínimo, com espaços mínimos, que as minhas pernas chegaram praticamente dobradas, sem condição de esticar, afinal foram 12 horas de vôo. Ainda não tínhamos avião direito para Lisboa saindo daqui de Salvador, para irmos para o exterior tínhamos de pegar a conexão em Rio de Janeiro ou São Paulo, por isso tantas horas de vôo e esperas em aeroportos.

Cheguei cansada, como é obvio, às 07h00min da manhã e o trabalho começava as 08h30min, portanto, só foi o tempo de me instalar no meu quarto conjugado com os demais hóspedes e ir para o trabalho. Estava ansiosa por um motivo, eu ia fazer uma série de audiências de impedimento, porque o advogado era filho da Juíza titular, ou seja; eu ia passar um dia quase todo fazendo audiências com um só advogado de um dos lados da mesa, prenúncio de um dia chato, com muitos aborrecimentos. Deixem-me dizer que não só o rapaz era parente da Juíza, como, também, a diretora de secretaria o era. Uma família que trabalhava unida... Pois é eu peguei, de cara, este abacaxi. Para rimar com a cidade deveria dizer “abacaxu”. 

Dentre as inúmeras audiências da pauta havia algumas contra a Prefeitura local e contra o Banco do Estado da Bahia, que ainda existia. Não gostava de fazer audiências de bancos, nunca gostei, os advogados só faltam se matar, um para tirar do banco e o outro para não permitir que se tire: horas extras intrabalhadas em muitas ocasiões, muitas vezes comprovadas por inúmeras testemunhas sem qualquer ética, moralidade, dignidade, cidadania, pois mentiam escancaradamente sem que a pobre julgadora pudesse, ao menos, declarar esta falta de verdade.

Em Salvador, quando disse a alguns colegas que ia para aquela cidade, todos, sem exceção, me falaram do “Cinquentinha”, era este o seu apelido dentro da comunidade forense, isto porque qualquer proposta de acordo, fosse o processo de grande, ou de pequeno valor, a proposta era a mesma, “pago cinquentinha”. Achei engraçado, embora considerando uma falta de respeito para com o próprio magistrado, porque entendia a proposta, se o valor da causa fosse grande, um deboche, aliás, continuo achando. Ninguém me disse como ele era, quem era, só me deram esta dica.

Comecei as audiências e, logo de início, havia uma em que a reclamada era a Prefeitura local. Respondendo ao pregão entram as partes acompanhadas dos seus respectivos patronos; e aí me vem a figura: cabelos encaracolados de um castanho bem claro, uma cara sorridente, um rosto peculiar, um corpo pequeno e com um desvio para um dos lados, que embora de direita, seguia, relativamente, uma esquerda, acredito que um pouco festiva, pois, muito burguesa, ligada a muitos luxos e sabores, que não posso acreditar que esta tendência pudesse ou possa, um dia, vir a ser radical. Viajar para Cuba ou para a Rússia não faz de ninguém um grande  socialista, ou comunista, ou ainda,  um seguidor do marxismo, enfim, mas isto não vem ao caso.

A audiência começa e eu pergunto: Há alguma possibilidade de acordo? Há sim doutora, responde aquela figura com uma voz “colossal”, nada condizente com a sua aparência, quero dizer, a gente espera uma voz menos postada, menos grossa: “cinquentinha”.  Apesar de achar mesmo a proposta debochada, não pude deixar de rir, porque naquele momento fui oficialmente apresentada ao Dr. “Cinquentinha”, o amigo de todos, um homem feliz, com muitas estórias e muito carinho e atenção pelos nossos pares, de quem se fez amigo de tantos quantos por lá passaram.

Fiz audiência até tarde, muitas mesmo, e, por isso mesmo, não tive condição de sair para almoçar, ou seja; quando sai da sala da audiência, lá pelas quatro horas da tarde, não havia mais lugar para comer, resultado, comi frutas e pão com queijo e pronto.

Estava cansada e fui para o hotel fazer as decisões, muitos processos de banco conclusos, uma “merda” colossal, mas que jeito! Quem tá na chuva tem de se molhar, e eu me molhei muito, pela grande responsabilidade que tive em todo o tempo em que exerci a profissão que “escolhi”; escolha feita por necessidade, ou não, mas escolha.

No dia seguinte, já familiarizada com o “Cinquentinha”, já não estranhei as propostas de acordo, embora tivesse lhe dito que aquilo era uma brincadeira, e ele me convidou para almoçar na casa dele. Em principio disse não, até porque achava mesmo um inconveniente fazer isto, por todos os motivos possíveis, inclusive o de ir para a casa de um advogado militante, aquilo não ia soar bem, embora uma boa parte dos colegas que por ali passaram me dissesse que o melhor mesmo era ser amigo do doutor e comer na casa dele, porque a “Mariquinha” era uma cozinheira de mão cheia, e eu não ia encontrar um lugar melhor para almoçar; depois eu nunca sabia o horário que a audiência terminaria, portanto, não poderia acertar almoço na casa de pessoa alguma. Quanto ao segundo motivo isto foi resolvido pelo próprio “Cinquentinha, que me disse que a hora que eu saísse da audiência poderia ir  almoçar, porque a Mariquinha estava a me esperar, sem qualquer problema.

Não tive muita saída e fui almoçar na casa do “Dr. Cinquentinha”, agradeço imenso a gentileza repetida em muitas oportunidades. Mariquinha realmente era uma grande cozinheira, aliada a isto estava a grande qualidade de ser uma espécie de gerente da casa do doutor; ela cuidava de tudo acompanhada dos seus ajudantes de ordens; os dois filhos dela. Quando a conheci  era apenas uma, que tinha o apelido de deputada, o outro, que era homem e nasceu bem depois, certamente, era o deputado, quiçá senador; vereador é que não seria: o cargo não tem élan para que o seu portador freqüente a casa.

Quando conheci o “Dr. Cinquentinha” ele estava descasado, acho eu, tinha a recém separado da mãe de sua filha; ele estava sozinho, mas nem tanto assim, porque tinha “as mineirinhas boas demais” que sempre estavam dispostas a lhe fazer companhia, além disto tinha ali a sua família, todos bem posicionados. Eram de lá e lá se estabeleceram, embora a família tenha esticado os braços alcançando o Rio de Janeiro, onde o próprio Dr. estudou e Minas Gerais, onde uma de suas irmãs morava lou ainda mora. Todos pareciam muito felizes e grandes “viventes”, andavam de bem com a vida, gozadores naturais dela e dos outros. Muitos sobrinhos triplicaram o clã, um deles, que bem me lembro, trabalhou comigo; um outro, conhecido por “nariz de cera”, era muito ligado ao tio, e eu morria de rir ao conferir porque era assim chamado, é que o nariz era bem grande.

Foi na casa do “Cinquentinha” que comi, pela primeira vez, “javali”,  acho eu que foi esteo bicho, preparado a duas mãos; a dele e a da Mariquinha; ele, claro, o “gourmet” fazia o tempero com vinho, etc., e ela é que ficava responsável pelo “assar” o bicho, que tinha de ir para o forno com a” vinha d´alho” e pelo tempo proporcional à quantidade de quilos da carne. Já não me lembro a proporção, mas sei que assim era.

Comi muitas e diferentes comidas na casa do "Cinquentinha", temperadas ou não por ele, mas sempre com a participação providencial da Mariquinhas. Lembro-me de uma lagosta à “não sei quem”, parece-me que a "fidel castro",  que, diziam ser uma maravilha, eu não comia porque nao gosto da bicha. Degustei queijos, bebi bons vinhos, com a musica ambiente escolhida pelo Dr. que, diga-se de passagem, tem excelente bom gosto. Não admira as tantas namoradas que conheci, seja grande, seja pequena, mineirinha ou não, todas pareciam apaixonadas pelo galã, que sabia realmente agradar uma mulher.

Foi com ele, e por ele, que conheci muitos lugares no extremo sul da Bahia: Prado, Canavieirasou Caravelas, já não lembro, Cumuruxatiba, carinhosamente chamada pelo clã de “cumuru”, Carnaíva. Estive inúmeras vezes em Porto Seguro, imagine que até conheci Teixeira de Freitas, não sei bem para que e nem o motivo, mas sei que lá estive em companhia do Dr., com  o qual o pior lugar ficava bonito, contagiado com a sua alegria, a sua risada, a sua vontade de viver e de ser feliz. Com ele a gente vê a beleza onde ela, em princípio, não existe.

Cumuru, entretanto, de todos os lugares que estive, foi o especial, estive lá várias vezes: fui com filhos, com amigos, com o companheiro, com irmãos, aquele é um lugar abençoado, até porque, tem o Dr. Cinquentinho como filho natural. A família domina o pedaço e é muito bom ver todos eles reunidos, mesmo quando isto contrariava uma rainha com a qual ele conviveu por certo tempo e com quem, também, teve um filho.

Tive grandes momentos na companhaia do “Cinquentinha”, estive em uma das mais belas comemorações do seu aniversário, que é um evento seja em Cumuru, seja onde ele resolve festejar. Tenho muitas saudades, e vou fazer força para, este ano, no dia 06 de setembro, estar onde ele estiver para comemorar e agradecer os bons e grandes momentos que compartilhamos, nós e as nossas famílias.

Continuo tendo noticias do “Cinquentinha”, que agora toca piano, comprou um para a sua casa, e tem um tocador particular para um “happy hour”. Podre de chic! Agora tive o prazer de descobrir que ele é um seguidor do blog, pelo que agradeço, registrando, entretanto, que o começo deste texto já estava no prelo quando descobri mais um seguidor, e que para minha surpresa era ele.

Obrigada amigo, agradeço cada minuto de prazer que proporcionou a mim e aos meus, bem como a sua admiração, o seu respeito para comigo. Continue feliz distribuindo simpatia e conquistando amigos, com o seu riso franco, aberto; com o seu riso contínuo que parece não querer parar, certamente para contagiar quem esteja do seu lado e que, por mais triste que venha a estar, possa sorrir também. Um grande abraço e obrigada por me permitir conhecê-lo.  

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Quer uma prova?


No ano de 1867 foi publicado em Lisboa o Código Civil Português que,em 1869, através do Decreto de 18 de novembro, teve a sua aplicação estendida ao ultramar. O art. 8º do decreto que determinou a extensão declarava que, na aplicação do Código, deveriam ser respeitados os usos e costumes dos baneanes, bathiás, parses, mouros, gentios e indígenas.
Bom, necessariamente, para a observação dos usos e costumes dos povos acima nomeados, os julgadores, aqueles que deveriam aplicá-los, teriam de conhecê-los, o que se tornou, talvez, o maior problema da distribuição da justiça nas colônias portuguesas, pois, apesar de inúmeras vezes ordenada a codificação dos costumes dos “indígenas”, ela não aconteceu, não só pela diversidade das etnias existentes nas colônias, como, também, pelo próprio descaso das autoridades no cumprimento de tais determinações, embora algumas tentativas tenham sido feitas, a exemplo do Código Cafreal do Districto de Inhambane (1852) anterior ao Código Civil; Código de Milandos Inhambenses (1889) e outras tentativias, que não foram avante.
Entretanto, não foi determinada, somente, a aplicação do Código Civil, também o Código Penal deveria ter aplicação no Ultramar, ou seja; aos colonizados (nativos), que à época, na sua grande maioria, eram escravos, porquanto ainda não havia sido abolida a escravidão o que só ocorreu, definitivamente, em 1878, quando foi extinta a condição de “libertos”, pois, apesar da lei extintiva da escravidão datar de 1869, os escravos, que a partir dessa lei eram tidos como libertos, deveriam continuar trabalhando para os seus ex proprietários até o ano de 1878, quando deixariam de ser considerados como tais, e, portanto, ascendiam a condição de cidadãos portugueses com os direitos e garantias estabelecidos na Constituição e demais leis (Código Civil Português) e outras leis ordinárias.
Todavia, os dirigentes portugueses, apercebendo-se de que em 1878 todos os libertos galgariam a condição de cidadão português, embora, como outros, não pudessem votar, devido às restrições: econômicas (havia um limite de renda para que a pessoa fosse considerada apta a exercer seu direito de cidadania); de gênero (as mulheres não votavam); sociais (os vadios, os que sofreram condenações, os libertos); transformaram, através da lei, esses libertos em serviçais, aqueles que eram obrigados a contratar os seus serviços, sob pena de serem considerados “vadios” e, nesta qualidade, serem condenados ao trabalho compelido.
É decididamente o controle que agora tinha de ser exercido em relação aos nativos, que já não eram mais escravos, que fez com que os portugueses tivessem um maior contato com os mesmos e necessitassem de um maior conhecimento dos seus usos e costumes e criassem uma legislação especial para, a pretexto de trazê-los para a civilização, cumprindo a missão civilizacional, obrigação de toda a potência colonizadora( Conferência de Berlim - 1885), afastá-los dos seus “bárbaros” costumes, aqueles que atentavam contra moral.
E foi assim que os portugueses tomaram para si a distribuição da justiça (administrador-juiz), mui particularmente, no que se refere à punição dos atos considerados como infrações penais, porque, no direito civil, nas questões que envolvessem direitos de família, sucessão, propriedade, os usos e costumes em que as partes fossem indígenas, deveriam ser observados os usos e costumes indígenas, desde que não contrariassem os princípios da humanidade e da moralidade.
Desta maneira é que afastou-se a justiça penal “indígena”, aquela que era aplicada pela autoridade tradicional.Tal justiça era centrada na “reparação do dano causado”, ou seja, o agente deveria indenizar a vitima, ou a família desta, pelo prejuízo que causou, mas para chegar a este ponto, o da indenização, havia todo um ritual, ou seja, um processo que deveria ser seguido para que, em havendo dúvida da autoria do crime, ou para apreciar a causa dele, e os motivos que determinaram a conduta do individuo, ela fosse afastada e o criminoso(s) considerado, ou não, culpado.
 Para se chegar ao veredicto final, ou seja, considerar, ou não, o agente do crime como culpado ou inocente, utilizava-se diversas provas, incluindo a testemunhal, a confissão, mas, quando o fato era negado, havia uma prova a que o acusado era submetido. Esta prova judicial consistia em que, o acusado, para provar a sua inocência, tinha de tomar uma beberagem feita com folhas de uma planta, que era tóxica, (pau de feiticeiro). Caso ele tomasse tal beberagem e nada acontecesse, seria considerado inocente; se viesse a morrer por força da ingestão da bebida era culpado, e a sua família tinha de pagar a indenização cabível.
Havia muitas implicações em relação a esta beberagem, porque, ela admitia uma manipulação pelo responsável pelo fabrico da bebida, que não tinha uma fórmula fixa. Desta maneira, dependendo da quantidade das folhas, da água, enfim, da dosagem utilizada, o acusado poderia mesmo vir a falecer, ou vomitar a bebida, casos em que era considerado culpado. Ou seja, a prova podia ser manipulada, portanto, era uma prova falha, que somente a tradição pode explicar. Esta prova não é, ao contrário do que Ayres de Ornellas acreditava, inerente ao “direito africano”, pois  considerada como o “Juízo de Deus”  a “ordália” sempre foi utilizada para determinar a culpa ou inocência do acusado por meio de elementos da natureza, ou seja, podiam ser utilizadas as plantas (beberagens), a água, o fogo, a fim que o acusado provasse a sua inocência na Europa medieval; recordem-se dos duelos, do andar sobre o fogo, dentre outras provas existentes.
É evidente que a prova do “muave”, como era conhecido o tal juramento nas colônias portuguesas, foi proibida pelos colonizadores, mas, apesar da proibição, ela continuou a ser praticada entre os indígenas, que, agora, utilizavam cães ou galinhas como seus representantes na sua realização, ou seja; a beberagem era dada à galinha, que era trazida pelo acusado, ou acusados, se a galinha bebesse o muave e nada acontecesse, o acusado era inocentado, se, ao contrário ela morresse, a culpa estava mais de que comprovada. Ayres de Ornellas (1901.51-52) discorrendo sobre raças e línguas indígenas em Moçambique em memória apresentada no Congresso Colonial  Nacional em diz:
“[...] a do muave (nome genérico para indicar a prova por meio do emprego de substância venenosa) é que parece ser mais especialmente de invenção africana. Muave é a forma aportuguesada de mwai, nome de uma árvore, cuja casaca reduzida a povo é dada a beber com água. Frei João dos Santos, Gramitto, trazem curiosas descrições d´esta prova, hoje muito em desuso pelo alargamento da influência européia. Mesmo os macuas contentaram-se muitas vezes em da o muave a um cão representando o seu dono. Este tem a decisão a favor se o animal  escapa; É mais simples e mais inoffensivo.[...] É também facto que o effeito do muave depende  muito da maneira como é preparado e o preparador é também meio feiticeiro e facilmente peitado por este”. Raças e Línguas Indígenas em Moçambique- Memória apresentada ao Congresso Colonial Nacional, Lisboa,A Liberal, 1901 pp.51-52
Contudo, não se deixou de aplicar o “muave” aos seres humanos, pois a fiscalização dos portugueses não era tamanha que tal proibição fosse mesmo levada a efeito. A imensidão do território, povoações sem quaisquer autoridades, falta efetiva de pessoal, eram as causas desta pouca, ou, em alguns sítos, quase nenhuma fiscalização, e nesses espaços o poder tradicional e, consequentemente, os costumes, eram observados, não sendo, entretanto, somente nos territórios mais afastados que isto ocorria, como demonstra o julgamento dos indígenas – réus – o chefe Vahiua e o advinho de nome Mevenha, por este último lhe ter morto um irmão com feitiço. O indígena Mevenha, que foi procurado por Vahiua para pagar a indenização pela morte do irmão, não cedeu diante do pedido solicitado pelo chefe e propôs que ele tomasse o “muave” para provar a sua inocência. O chefe não queria que ele tomasse o “muave”, pois queria os panos como indenização, mas o Mevenha insistiu e foi pedir a um terceiro, de nome Acubo, que também foi réu no processo, que fizesse o “muave”, o que foi feito, sendo que o Mevenha tomou o mesmo e veio a falecer, o que para os indígenas significava a sua culpa.
O julgamento foi feito pelo Tribunal Privativo dos Indígenas em outubro de 1928 e o crime foi praticado em setembro do mesmo ano
 “[...] Considerando os usos e costumes indígenas, o estado atrazado de civilização em que ainda se encontram os réus, e, por conseqüência, a sua ignorância do mal que praticavam conclue-se que não houve  por parte de nenhum dos argüidos a intenção de matar, tanto mais que o “muave” foi encomendado e tomado voluntariamente pelo Mavenha, mas apenas inconsideração dos réus aliada á sua ignorância, cometendo assim o crime de homicídio involuntário previsto e punido pelo artigo trezentos e sessenta e oito do Codigo Penal, pelo que condeno o réu Vahiua na pena de seis meses de prisão correcional, e o réu Acubo com dezoito meses de igual pena nos termos do parágrafo primeiro do artigo décimo segundo do Regulamento dos Tribunais Privativos dos Indigenas, de onze de novembro de mil novecentos e vinte e sete, que serão cumpridas em Maracotera. Maracotera, vinte e quatro de outubro de mil novecentos e vinte e oito. O Chefe do Conselho(as) João de Faria.[...].” AHM-FDSNI- Tribunal Privativo dos Indigenas -  Cx1586, Anos 1928-129.
  Mesmo após a independência e, na atualidade, a prova do “muave” para confirmação de inocência é aplicada. É uma prova a que o acusado que se diz inocente se submete voluntariamente, está tão convicto da sua inocência que acredita que, mesmo sabendo que a bebida pode ser mortífera, não terá efeito algum, pois a proteção divina, do sobrenatural vai falar por si. Observe-se que o julgador, no caso, não faz qualquer julgamento, que é ditado pelo resultado da prova, ele é um mero portador do resultado da prova, declara a sentença, que, no caso de ter considerado o acusado como culpado, obrigará a família do condenado a pagar a indenização correspondente à vitima, ou à sua família.  
  E você: é inocente ou culpado? Quer fazer a prova do “muave”? 

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Uma presente de São João

São João  preparou uma surpresa, desta feita, agradável.

Recebe um telefonema de alguém muito especial dizendo que chegaria a Lisboa no dia 24, onde passaria um dia e meio.

Primeiro uma reação ruim, porque era estranha aquela sensação de alguém, que  fora tão intimo,  ligar para dizer que passaria um dia e  meio  na cidade, onde, outrora, passaram dias, viajaram muito, curtiram muito, foram imensamente felizes, e agora,  isto:  vou passar um dia e meio aí, e estou com um amigo.

Passou os dias pensando nisto, achando inclusive uma coisa  mesmo muito estranha por tantos outros aspectos ainda.  Estava fora do Brasil e, por ironia, o destino lhe prepara esta. Vai ser visitada por  uma pessoa que, tempos atrás, era o seu parceiro de visitas a outrem. Se isto acontecesse há algum tempo atrás, certamente, o outro, com quem ele viajava, seria ela.

Bom, mais o fato é que o dia chegou.  Ele chegou tarde, e a metade do dia, que ele passaria em Lisboa, foi-se, sem que ela o tivesse visto, recebera, apenas um lacônico telefonema: Chegamos agora, estamos no Hotel Mundial e vamos procurar algum lugar para jantar.

Nem se arriscou a oferecer-se para ir ter com eles, pois, se quisessem  a companhia dela  o telefonema seria diferente. Pensou consigo: eles querem  aproveitar Lisboa, á noite, sozinhos, portanto...

E mais uma vez a sensação esquisita,- Uma dorzinha no peito,  pois, as vezes ainda  achava que tinha ligações fortes com aquele homem e o “nao estar” numa situação destas ainda lhe machucava.

O dia seguinte chega, ela que  esperava o telefonema, que não vinha,  já estava ansiosa, a amiga, mais ainda, porque tinha preparado uma pequena recepção para eles, não sem razão, porque: primeiro, pelo tempo que moram juntas a amiga já conhecia todos da sua familia, logicamente, com exceção do seu filho que aqui ja viera, por ouvir falar, e agora conheceria ele, que chegava para uma visita relâmpago,  também era um velho conhecido dela, porque já fizera, inclusive, parte da familia; segundo porque gostava mesmo de mostrar onde ela ficava aqui em Lisboa.

Cansada de esperar, pediu o número do hotel e ligou, falou com ele, que atendeu e disse que estavam saindo para ir a alguns lugares  que o amigo queria rever e conhecer.  Frustação! Espanto! E se deu conta, mais uma vez, não se vinha a Lisboa por causa dela ou por ela, e sim por Lisboa, apenas, porque se por ela fosse, evidentemente, que àquela altura estariam juntos.

- Tá bem, mas eu pensava que vocês queriam a minha companhia neste tour.

- Bom, nós achávamos que íamos lhe incomodar, mas se você pode,  ficamos aqui e aguardamos.
Embora cheia de receios, porque agora ela era que achava que estava incomodando, pois parecia a si que eles queriam estar sós naquela  esticada em Lisboa, foi para o Hotel.

O coração aos pulos, realmente, aquele homem conseguia mexer consigo de uma maneira para lá  de intensa.

Quando estava pedindo que o chamassem pelo telefone na recepção do hotel,  ele aparece e não só ele; havia  mais três amigos.

Tomou susto, não sabia que havia mais dois, achava que era só ele e o cardio particular, e começou a preocupar-se, agora, com a amiga que se preparou apenas para receber dois.

Procurou um momento em que eles não notassem ligou para ela e, pedindo desculpas, disse que a quantidade de gente era maior e falou o número de pessoas. A amiga, como sempre, não se importou, - E que venham eles -.  Depois do telefonema ficou a vontade, sabia que a amiga providenciaria tudo, e foi fazer o passeio por Lisboa, aquele de turistas mesmo.

Primeira parada: Elevador de Santa Justa;: ficam ali conversando na “bicha” esperando o elevador, e neste momentos é que se percebe o quanto  o sistema é inviavel. Uma fila imensa de pessoas para  subir, e o ticket é pago dentro do elevador, onde só existe uma funcionária para cobrar, fazer o elevador funcionar; enfim, não se explica. No entanto, tudo isto fica para trás quando se chega no alto, embora também tenham feito  outra coisa errada, é que no alto do elevador, onde se vê o  Tejo e metade de Lisboa (centro)  e mais o outro lado; tinha um bar, que foi retirado. Havia música e brasileira, era muito bom tomar algumas cervejas, ainda que para lá de cara, com aquele visual. A vista é magnifica, você se encanta mesmo.

Daí saíram pelas ruínas do Carmo de onde alcançaram o Chiado. Passaram por Pessoa, que continua sentado ali esperando que os seus admiradores lhe rendam homenagens, o que, sem dúvida alguma, foi feito.

Dali desceram  junto à praça Camões, uma das ruas  que dá no Cais Sodré. Ali embaixo foram ao Mercado da Ribeira, de onde saíram e tomaram uma Ginja, atendidos por um brasileiro. Na garrafeira, alguns bons vinhos.

Tomaram o elétrico e foram para a Torre de Belém: Imponente, linda, cheia de história daqui e de lá, das colônias, continuando com a sua  missão de mostrar o caminho correto a quem entra em Lisboa pelo Tejo.

Depois, uma caminhada até o Monumento dos Navegadores,  ainda em Belém, mas já na praça onde fica  o mosteiro dos Jerônimos; aqui, uma parada estratégica para um xixi,  chops, conversa fiada;  mais brasileiros servindo, e ela se sente feliz, lembrando que aquele momento,  há algum tempo, era a sua própria vida, que parecia voltar  com pessoas novas, mas o velho “casal” parecia ter renascido, estavam juntos, felizes, e com os amigos dele, o que ele tanto gostava.

Ele voltou ao hotel para pegar as encomendas que trouxera para ela, os outros entraram nos Jerônimos; Que coisa fantástica, ali se tem a sensação que se é muito pequeno. Aquilo é de uma grandiosidade tão intensa que a pessoa se sente mínima.  Fica-se o tempo inteiro a perguntar como o homem conseguiu fazer tudo aquilo, num tempo em que não havia qualquer tecnologia, isto é, igual a de hoje. Arcos perfeitos,  sustentação perfeita, claustros enormes, azulejos trabalhados no refeitório,  madeira trabalhada na sala do côro, granito e mármore esculpidos com detalhes que fazem com que se pense que se esta em um sonho, que aquilo não é real. Os questionamentos são inevitáveis: Como eles conseguiram isto? Quantas pessoas devem ter morrido nesta obra? Quanto tempo se levou para concluir esa  obra?, Enfim.

Mas a amiga ta esperando e eles precisam ir até a casa, já são duas horas da tarde e eles saem do Jerônimos e seguem para  a casa dela, em Carnaxide.

Alegria total, a amiga esta feliz, tal qual ela. Em principio quatro homens, de uma vez só, naquela casa, já era motivo de uma grande festa, porque ali não entra homem normalmente, a não ser o “encanador”, o Sr. Armando, que agora ja lá não tem o que fazer, porque a máquina de lavar louça já não faz mais parte do mobiliário, o homem do gás, da energia, da água, enfim. Depois era o  “homem” que estava ali em carne e osso, e a prova viva de que já tivera um companheiro, que não fora um  “marido virtual” como alguns pensavam.

Divertiram-se a valer, lembranças de outros amigos, casos; tudo enfim lembrava o seu antigamente com aquele homem. As pessoas notavam a sua felicidade e até faziam comentários sobre “os dois”, não muito bem aceitos por ele.

O queijo da serra da estrela fez sucesso absoluto. O Cartuxa mais ainda, aliás, recomenda-se; torradas, presunto, tudo artigo de primeira e de Portugal. Comeram, beberam, conversaram, mas tinham de ir. Ainda iriam até a Expo.

Foi o que fizeram, pegaram o taxi e foram para a expo, uma parte moderna e linda de Lisboa, onde se pode ver a grandeza da Ponte Vasco da Gama, o aquário, a estrutura arquitetônica da estação de comboio, autocarro, metro, uma grandiosidade da engenharia portuguesa. 

Ali sentaram no Senhor peixe, comeram  ameijoas, camarão, tomaram imperiais e mais conversa fiada. Não havia compromissos, a não ser o de voltar ao hotel, o que fizeram um pouco mais tarde, porque eles queriam  ir ao fado. Ela deixou-os e foi  para casa mudar de roupa, entretanto, no caminho, parou, parou para  beber mais uma taça, quase tomou uma garrafa de vinho sozinha. Para variar, chorou, pelas lembranças, pelo dia, pela saudade, aquilo era êfemero e fulgaz, e estava saindo, mais uma vez, sem que ela quisesse, das suas mãos.

Um telefonema lhe tira  deste momento de tristeza, era ele, que dizia que os planos tinham  mudado, que ela viesse para o hotel de onde sairiam para jantar, eles estavam cansados e queriam dormir.

Chegou ao hotel e foi até o oitavo andar,e mais uma boa e agradável surpresa.  Ali tem um restaurante de onde se pode ver toda a praça do Martim Moniz, e muitos outros lugares de Lisboa, ficou encantada.

Saíram do hotel e foram até as Portas de Santo Antão, mais piadas, mais risos, mais alegria.Comeram bacalhau atendidos por um brasileiro, tomaram vinho branco, sorriram. mas a hora era chegada, e ela tinha de se despedir, não havia outro maneira:  triste, mas  conformada, ela o fez, e, mais uma vez, sozinha, retorna  para casa.

No caminho se questiona: Será que isto foi um sonho?

Na manhã do dia seguinte o mesmo questionamento: Isto foi um sonho?

Se não tiver sido, agradece aos personagens dele: Carlos,Carlinhos, Juarez, Miraldo e Vera:

 MUITO OBRIGADA!