quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Procurando Letras

Teve muitos namorados, dos 14 aos 19 anos namorou muito. Bom, mas não pensem que era namoro avançado não, a maioria era apenas aquele namoro de longe, quase platônico, ficava mesmo só na vontade, quando muito, no caso de uma aproximação, um rubor nas faces indicava que ali havia alguma coisa. Mas teve um primeiro namorado mesmo. Filho de um bicheiro que morava na sua rua, bicheiro mesmo, aquele homem que tem banca de jogo de bicho. O desgraçado do rapaz, que apesar de baixinho era bonitinho, tinha os olhos cor de mel, era moreno e filho do bicheiro, aliás, esta era a sua maior qualidade, porque assim agradava a ela e à sua família, porque ser filho de bicheiro significava ter um pouco mais de dinheiro e, portanto, uma possível vida melhor. Além disto, porque o bicheiro era amigo do seu pai, as coisas eram facilitadas. Mas este namoro, não deu em nada, porque o “linho” não era bom, nunca chegaria à diagonal, além de usar dente de ouro.

Depois namorou um marinheiro, bonito, alto, com um riso safado e realmente um homem. Ela tinha catorze e ele já tinha vinte e dois anos. O conheceu numa festa de “Santo Antonio”, no dia da novena dedicado aos jovens. O homem chegou e a mulherada toda endoidou. O miserável era bonito mesmo. Ela, que era uma mulher aos catorze anos, era de chamar atenção mesmo, sempre o foi, mas ainda não tinha as manhas da conquista, não saberia disputar, e ganhar, um homem. Não precisou de nada disto, ele veio a si. Resultado: entre idas, vindas, “cornos”, namoraram por uns 4 anos. Ele, já vivido, pois com este negócio de marinha já tinha morado até no Rio de Janeiro, à época, o símbolo do avanço, seja na cultura, seja na sacanagem e devassidão. Ela ainda usava calcinhas feitas de algodãozinho branco confeccionadas pela mãe e conga azul, aquela que tinha uma parte branca na ponta. Parece, entretanto, que ele gostava dela mesmo, não era só o desejo, este, antigamente, podia ser saciado com outras pessoas, era assim que funcionava. O namoro prolongou-se e a cada dia ficava mais quente. Agora ela já beijava na boca, já deixava que os seus peitos fossem tocados, já se sentia desfalecer quando os lábios dele lhe tocavam os mamilos, tudo muito furtivamente, claro, tinha só catorze anos e namorava, como se dizia, “na porta”, muitas vezes empatados pelos pigarros dos pais e pela irmã mais nova  que insistia em brincar com o rapaz.

Depois deste namorado, e enquanto ele, teve muitos, mas muitos mesmo, pensava em fazer um alfabeto completo deles. Não conseguiu é claro, mas bem que tentou. O seu grande problema foi a insistente repetição de “AA”,” JJ”, “FF”, mas conseguiu até um namorado que tinha o nome começado com a letra “B”. Este também foi contemporâneo do marinheiro, que passava, às vezes, 6 meses sem dar as caras, no mar, isto é o que ele dizia. Ela, terrena, e sem estar morta, fazia a sua parte, embora, quando o homem estava em terra, era ele o dono do pedaço. Com o “B”, a família fazia muito gosto, porque o cidadão era petroleiro. A esta altura, ela já tinha dezessete anos e estudava à noite no Colégio da Bahia. Ele também estudava ali, mas olhem bem a diferença: o cara era petroleiro, tinha uns 35 anos, tinha carro, e uma casa em um conjunto de petroleiros, no Stiep. O bicho tava doido pela mulher. Chegou a levar os pais para conhecerem a casa. Esses ficaram entusiasmados. A casa tinha até “suíte”. A filha ia ficar rica. A visita foi conversa de uma semana, ao menos, todos falavam do grande partido que a menina arrumara: petroleiro!... Pensem ai! Mas o petroleiro pisou na bola, quando disse à menina, que sempre sonhou em ser doutora, que assim que eles casassem ela ia deixar de estudar e não iria trabalhar mais. Pronto, o “B” foi para as cucuias, só serviu mesmo para que ela afastasse o sonho de completar o alfabeto.

Bom, Ari, Bernardo, Carlos e suas variações (Carlos José, Carlos Alberto, Carlos Augusto), Evandro, Fernado I, II, III, (Fernando com sobrenome árabe, lindo); Fernando de Conquista outro homem lindo e disputado; Fernando irmão de Auxiliadora, e por aí vai. Hélio, Ilmar,José( este variou muito pelo composto do nome) Jose Carlos, José Alberto, José Milton, José Luis, Joaquim, este último era seminarista, claro que deixou de sê-lo. Com este se envolveu um pouco, mas com razão, o rapaz era bonito, trabalhava na “Radio City” e ainda cantava, muitas vezes, nas reuniões do grupo de jovens do bairro, o ouvia músicas cujas letras diziam respeito a situações provocadas por ela, pelas suas escapadelas, a exemplo de “você deixou alguém a lhe esperar, você deixou mais um na solidão, quem me dera meu bem eu pudesse outra vez te abraçar...”; isto fazendo alusão a um encontro que marcaram para um cinema e ela não aparecera. Em outra oportunidade ouviu “Eu não sei mais quanto tempo eu, tenho ainda de esperar, a distância não vai impedir, meu amor de te encontrar”, quando foi fazer uma viagem com uma tia para o Rio de Janeiro, em muitas outras passagens, ele declarava o seu amor através das músicas.

Com a letra “I” também teve o primeiro homem da sua vida, aquele que, dentro de um fusca verde, lhe fez madura aos dezoito anos. O Homem tinha 39 anos e era pai de um filho de 11 e queria mesmo casar com ela, que não suportava esta idéia mesmo, pois todos que assim pensaram a queriam, tão somente, para dona de casa, este, com uma agravante, tomar conta do filho também. Resultado: dançou com todo o doce que podia proporcionar, pois era, à época, representante da Embaré, uma indústria de “guloseimas”. i

Linaldo, taí um caso de completo amor platônico da parte dele. Era um contador que era amigo das amigas da mãe dela, por aí vocês já podem sentir a diferença de idade. Se ela tinha dezesseis ou dezessete, ele já deviria ter uns 30-32 ou até mais. Este frequentava a sua casa e ela até que tentou dar-lhe uns beijinhos, mas não lhe enchia as vistas, além do fato de que tinha um medo danado de homens ciumento, o que este bem era.

No Colégio Central conheceu Oyama, olhe o nome. Tinha a proteção enquanto esperava o ônibus à noite para ir para casa, ali no ponto da Carlos Gomes. O bichão era faixa preta de tudo o quanto fosse ligado a artes marciais.

Pulou muitas letras, mas teve o P em profusão, Paulo, Pedro, passou uma fase em que estes nomes pareciam ser os únicos que eram colocados nos rapazes, mas nenhum namoro deste vingou e também eram aqueles romances de um, dois ou três dias, hoje seria um “ficar”-

Arranjava namorado na missa, no ônibus, na rua, no colégio. Com namorados diversos assistiu “Dio Come Te Amo” umas dezesseis vezes, embora nunca tenha se cansado de ver o filme, aprendeu todas as músicas cantadas por Gigliola Cinquetti.

Teve uma fase de Roberto, aliás, começada com um que era apelidado de “Berro Grosso”, pois tinha uns olhos azuis lindos e uma voz de barítono da porra, chegou mesmo a cantar no madrigal da Universidade, onde fazia medicina. O de sobrenome Farias, também estudante de medicina, e muitos outros Robertos, ainda surgiram, uns mais importantes que outros, mas que também não foram adiante.

Com o “U” teve, não um namorado, mas uma paixão, não por parte dela, e sim da do homem, que era o gerente da empresa em que começou a trabalhar aos dezessete anos. O homem endoidou e fez com que ela passasse alguns vexames. Tinha ele um "simca", já era um homem de uns 40 anos, casado, com uma filha linda e com um a mulher muito interessante lá das bandas do Santo Antonio além do Carmo. Teve problemas, porque a mulher, esperta e do tipo baixo astral, fez alguns escândalos na porta do trabalho, chegou a questionar até mesmo o cigarro que a moça fumava, dizendo que o marido mudou a marca do dele somente para dar cigarro aquela “vagabunda”, pense ai! Mas o caso não ficou só nisso, nesta fase ela estava linda, linda mesmo, tanto que no próprio balcão da empresa conseguiu um namorado, que não resistiu ao vê-la de costa arrumando o arquivo. Resultado, namoro a vista. Namorou com ele, que era um filho do dono de uma empresa transportadora que tinha sede no Largo dos Mares, o seu nome era com “G”.O cara era um "patricinho" da época, já morara nos Estados Unidos e vinha cheio de arte para “comer” o que ainda não houvera sido degustado. Também, nesta mesma época, o sócio da empresa, um Cavalo Branco qualquer, queria lhe papar e ela era presenteada com roupas, relógios, cervejas, pois o homem era diretor de uma fabrica de cerveja, que se instalara em Camaçari, inclusive chegou mesmo a ir a sua casa falar com os seus pais, a fim de que eles permitissem que ela fosse a representante da marca na Miss Bahia. Os pais não permitiram.

Se isto era bom por um lado, era ruim por outro, e o ciúme do gerente fez com que este triângulo, que nunca foi amoroso, acabasse, com uma demissão anotada em caneta vermelha na carteira de trabalho, e ela teve de voltar a andar de ônibus, coisa que não fez durante, pelo menos, uns 9 meses, pois só ia trabalhar de carro, pois que os dois, o gerente e o diretor, disputavam este privilégio de levá-la para o trabalho pela manhã. Quem chegasse primeiro, era o motorista do dia.

Teve um “homem muito apaixonado que apesar de ter o nome começado com “J”, era bem conhecido pelo sobrenome, também uma pessoa bem mais velha que ela, que se apaixonou loucamente, Ela ainda não tinha noção do que era efetivamente uma grande paixão, e achava até engraçado alguém querer tanto outro assim. Mas chegou a uma das últimas letras do alfabeto, Aos dezenove anos caiu de rastos por um “V”. Apaixonou-se, amou, amou como se pode amar alguém na vida. Foi amada também, embora um amor efêmero, como efêmera é a felicidade. E por causa deste “V”, quase, pois fim ao sonho de completar um alfabeto de namorados. Antes disto teve um W, que não era inicio de nome de jogador de football, Wesley, Wedson, não! Não era assim; foi um médico, também bem mais velho que ela, que à época tinha dezoito anos enquanto ele tinha uns 30. Alagoinhas presenciou uma boa parte deste amor, que chegou mesmo a ser um caso bonito.

Vai continuar tentando, mas agora as coisas já são mais difíceis, as exigências são enormes e, portanto, tudo mais complicado, também depois do CJ, as esperanças de encontrar um grande amor no alfabeto fica complicado, deve ser problema com nomes compostos, mas não se enganem; ela ainda tem fôlego, “as letras que a aguardem”.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

LOBOLO - Venda da filha

Estava eu a ver a novela Caminho das Índias que demonstrava o costume indiano de os pais do noivo serem presenteados pelos pais da noiva, que também deveria levar consigo uma boa quantia. Não posso imaginar no Brasil um costume deste, acho que estaríamos, 80% das mulheres, solteiras, caso este fosse um costume da nossa sociedade. Felizmente não é, penso eu, pois nunca me deparei com uma situação desta, até porque, se assim fosse, seria mãe solteira.

Brincadeiras a parte. Estudando os usos e costumes de Moçambique para efeitos da complementação da tese de doutoramento, que tem como tema central a Aplicação da Justiça nas Colônias portuguesas, especificamente em Moçambique, deparei-me com um costume denominado LOBOLO.

Contrariamente ao que aparece na novela Caminho das Índias, entre as etnias Moçambicanas quem efetivava o pagamento do “dote” era o homem. O homem, na verdade, pagava pela mulher com quem iria se casar. Por ela, ele pagava aos pais uma determinada quantia, que variava de acordo com a região e etnia dos noivos, esclarecendo-se de logo que em Moçambique, no tempo colonial, a poligamia era aceita e que um homem, se dinheiro tivesse, poderia comprar tantas mulheres quanto pudesse, bastando, tão somente, fazer o pagamento do “lobolo”, que poderia ser, tanto em dinheiro, quanto em outros bens, sendo muito regular a entrega de certo número de cabeças de gado, e que o estudo feito remonta ao Século XX – 1900-1910

De acordo com Gonçalves Cota (1944:223) “as famílias patriarcais equilibram a perda duma filha que casa recebendo por ela dinheiro ou quaisquer valores econômicos que lhes permitem adquirir outra mulher para um filho que ficará sob autoridade do pai e o auxiliará; as famílias matriarcais não adoptam êste sistema, mas também conseguem o mesmo equilíbrio adquirindo para o seu grupo, em vez desses valores compensatórios, o proprio noivo que trabalhará para casa e ficará sob autoridade dos sogros.”

Vê-se, pois, que em Moçambique existiam dois sistemas familiares: o matriarcal e o patriarcal, sendo que o lobolo, o pagamento de uma compensação pela saída de uma filha do convívio da família, só acontecia na família patrilinear, porquanto na matrilinear era o homem que passava a conviver na casa da família da mulher, ajudando nos serviços para a manutenção da própria família: tomar conta do gado, se houvesse, arrumar madeira para as fogueiras, etc.

O “lobolo”, valor pago pelo pretendente a marido não pertencia à jovem que iria casar, ficava pertencendo à sua família, e seria utilizado pelo pai, caso ele tivesse filhos homens, na compra da mulher para estes, somente no caso de não existir filho varão, éque opai podia gastar o valor do lobolo com outro fim.

De acordo com Gonçalves Cota, (1944:227) houve casos em que os pais não respeitaram esta regra e com o dinheiro do lobolo da filha compraram uma nova mulher para si próprios.

O pagamento do lobolo gera uma série de consequências, que inclui a devolução do mesmo em diversos casos:

a) Quando a mulher comete adultério;

b) Quando abandona o marido;

c) Quando não procria;

d) Quando não cumpre os deveres conjugais.

Em todos estes casos o lobolo tem de ser devolvido ao marido, existindo vários “milandos” solicitando tal devolução. “Milandos” eram as questões entre indígenas submetidas ao julgamento das autoridades administrativas portuguesas, que eram responsáveis pela aplicação da Justiça aos indígenas, assim identificados desde o ano de 1894 pela lei, Decreto de 20 de Setembro de 1894(D.G nº 220 de 28.09.1894), como sendo “os nascidos no ultramar, de pae e mãe indígenas, e que não se distingam pela sua instrucção e costumes do commum da sua raça” (Art. 10º do Regulamento de 28.09.1894). A estes deveria ser aplicado um ordenamento jurídico diverso daquele que era aplicado aos portugueses.

Naturalmente que os portugueses não poderiam aceitar a poligamia, afinal eram cristãos e a lei civil punia o adultério e, portanto, não se poderia dar qualquer “status” de português a pessoas com costumes tão bárbaros, como eram identificados os usos e costumes dos indígenas, mui principalmente a poligamia, tanto que, quando em 1917 foi exigido o Alvará de assimilado,através da Portaria Provincial de nº 317 uma das exigências era que o pretendente a assimilado adotasse a monogamia; os outros requisitos eram: saber ler e escrever a língua portuguesa, ter meio de subsistência e viver afastado dos usos e costumes dos indígenas.

Mas voltando ao lobolo, que de acordo com JEFFREYS (1951:53) é o preço da criança e não o da mulher, pois segundo ele com o pagamento do lobolo o marido adquire o direito de ficar com os filhos: “a criança torna-se sua quando ele paga para transferir o seu “status” de membro do grupo da mãe para o seu próprio.

A discussão se o preço é pela mulher ou se pelas crianças no momento não vai ser objeto deste artigo, que quer discutir as causas que determinavam a devolução do lobolo e como os administradores das diversas circunscrições civis em Moçambique resolviam as questões que lhes eram postas tendo como causa de pedir a devolução do pagamento efetivado aos pais da mulher.

Nos casos de adultério, que somente poderia ser praticado pela mulher, dado que o homem era polígamo, se fazia necessário a devolução do lobolo, fosse qual fosse o tempo que durou o casamento. Os pais da mulher, ou os seus sucessores, tinham de devolver o preço pago por ela, ficando os filhos havidos no período do casamento com o homem.

Nos casos de abandono do lar, também aqui o lobolo era devolvido, e no caso de haver filhos, estes, também podiam ser requisitados pelo marido.

Em todos os demais casos acima indicados, o lobolo tinha de ser devolvido, e se isto não acontecia, os pais da mulher tinham que fazê-la voltar a viver com o “marido”, ou tinham de dar outra filha ao homem, mui particularmente nos casos de não procriação, ou seja, o comprador da mulher tinha que ter a sua mercadoria à disposição. Observe-se que o importante não era a mulher em si, e sim a satisfação do homem que a adquiriu.

Ha casos interessantes que foram submetidos aos administradores portugueses, valendo esclarecer que, antes os “milandos” eram resolvidos pelos régulos, mas os portugueses retiraram daquelas autoridades tradicionais muitos dos seus poderes, com o fim de enfraquecê-las, e distribuíram estes poderes aos administradores, que, se analisarmos pelo lado português, não tinham qualquer formação “jurídica” para se tornarem aplicadores da justiça, e pelo lado do indígena, pior ainda, porque eles não conheciam os costumes desses e, na maioria das vezes, aplicavam um direito hibrido, que não era uma coisa nem outra, nem os usos e costumes dos indígenas, que era mandado observar pela própria Constituição Portuguesa, e nem o direito português, que não admitia a poligamia, nem conhecia o lobolo, não tinha a divisão da família em patrilinear e matrilinear. Para a resolução dos “milandos” os administradores se serviam das informações dos próprios régulos, dos chefes de povoação, cabos, etc. e, ainda de alguns relatos feitos por “portugueses” encarregados de estudarem os usos e costumes indígenas e mais de alguns dispositivos legais, a exemplo do Capítulo III do Regulamento das Circunscrições(BOM nº 40 p. 428).

O fato é que o “lobolo” causava muitos problemas quando tinha de ser devolvido:

Em 1905, por exemplo, uma indígena filha de outro indígena de nome Zambe fugiu da companhia do seu companheiro de nome Mufana Maze, este, então, decidiu “fazer milando” e deu queixa na administração do distrito de Gaza, pedindo a devolução do lobolo e mais a devolução da filha havida no período do casamento. Todos foram ouvidos, o pai da indígena fujona, o querelante, o atual marido da indígena e a própria indígena. Restou apurado que, o Mufana Maze e o pai da indígena estavam mancomunados: o primeiro para receber dinheiro do atual marido, de nome Dambambe, que inclusive, tinha tido relações carnais com ela antes mesmo que ele a vendesse para o querelante, sendo ele o verdadeiro pai da filha da mulher, e o segundo para ter a filha e poder vendê-la. Também restou esclarecido que ele indenizou o primeiro marido, a quem entregou a quantia por ele paga ao pai da indígena. Foram condenados o querelante e o pai da indígena no pagamento de multa e prisão. O primeiro por mentir e querer tomar a filha para vendê-la, e o segundo por vender a mulher a duas pessoas diferentes. (AHM- FDSNI Cx 148- Milandos e Queixas Diversas- Gaza 1905).

Também em 1905 foi registrada uma queixa sob nº 8, no mesmo livro acima identificado, tendo como Querelante o indígena de nome Juelemane de Minhangane (minhangane é o nome do regulo das terras onde o indígena vivia e sempre era usado seu nome para identificar de onde o indígena pertencia) contra Maguibene, também de Minhagane. Diz o primeiro que o segundo era seu tido e recebeu o dinheiro do casamento das suas duas irmãs, que ficaram com ele, sob a proteção do tio, mas este gastou todo o dinheiro. Esclarece que as irmãs foram vendidas pelo seu pai quando ainda eram crianças. Que o tio tem de lhe entregar 5 cabeças de gado e mais 3£ que ainda faltam para completar todo o valor do remanescente.

Provou-se que o querelante tinha razão e o tio foi condenado a pagar o equivalente ao saldo remanescente em 3 meses.

Nota-se, pois, a variedade das questões que podiam ser suscitadas pelo fato do recebimento do lobolo. No segundo caso apresentado o filho do falecido pai das irmãs vendidas, reivindica o valor recebido pelo tio, pela venda delas ainda quando crianças.

O recebimento do lobolo, pois, pela família da “mulher” na realidade, era um pagamento quase que provisório, uma vez que, caso o casamento por qualquer motivo que ela desse causa, fosse desfeito, ele teria de ser devolvido a quem fez a compra.

Em outro momento descreverei mais “milandos”, uma forma muito interessante de conhecer os usos e costumes dos negros (indígenas) portugueses de Moçambique.



FONTES

AHM – FDSNI – Cx 148

BOM I Série nº2, de 18.01.1917, p. 8

BOM nº 40, de 03.10.1908, p 428

D.G nº 43 de 20.02.1894

D.G nº 220 de 28.09.1894.

Bibliografia

COTA, J. Gonçalves. Mitologia e Direito Consuetudinário dos Indigenas de Moçambique, Lourenço Marques, Imprensa Nacional de Moçambique, 1944

JEFFREYS, M.D.W- “Lobolo é o preço da Criança”. African Studies, Vol. 10, nº04, 1951, Trad. De José Carlos D´Almeida e Sousa Marques.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Solidão compartilhada

A casa é grande o que lhe dá a verdadeira noção da sua solidão. Para que uma casa tão grande assim? Ela não pretende dormir em cada quarto, sozinha, a cada noite, revezando entre eles os seus segredos, as suas tristezas.

Já não entra no seu próprio quarto, ele é a própria solidão, uma solidão compartilhada pelo quadro da parede, que, ironicamente, mostra um casal beijando-se, um beijo de amor. O quadro é de Abelleira, amigo dela. Tem medo, o autor do quadro é falecido e ela lembra que pode morrer também, talvez mais rápido, por causa da sua solidão.

Entra no banheiro do seu quarto, vai limpá-lo. Se sente estranha, a porta do box está mais leve, tão leve que, como ela, está descontrolada; resultado, corre no trilho e o puxador é quebrado, quebra exatamente em um lugar onde não tem recuperação. O pequeno puxador quer lhe dizer alguma coisa, também ele quer dizer que está sentindo uma imensa tristeza, está só, não é utilizado, ninguém mais usa o banheiro e ele perdeu a sua função.

Tudo seco, árido, o banheiro não tem mais uso, aquilo que outrora era disputado por tantos perdeu o seu papel, o seu status. Agora ele, também, é um recordante, vive de recordar, olha para a solitária figura que quer limpar o que está oco, limpo exatamente pela falta de uso, e pede silenciosamente: “ao menos dê uma descarga, deixe a água correr pelas minhas entranhas, deixe lubrificar os canos,  me deixe desaguar em algum lugar. Obedece: dá descarga, a água abunda, o som entrando goela abaixo do vaso sanitário dá a sensação que os canos lhe agradecem.

Abre a torneira da pia, a água sai fininha no começo, depois um jato mais forte, mas é preciso algum tempo para que a torneira perceba que foi aberta, que precisa cumprir a sua obrigação: deixar a água rolar, bem verdade que para nada, a não ser para desenferrujar um pouco, lubrificar os canos. Fica olhando água cair e entrar pelo ralo, tem a sensação que estão engolindo os seus sonhos.

Sai dali, vai até o o que deveria ser um gabinete, abre a porta do guarda-roupa, a solidão ainda é mais assustadora, o armário está cheio de roupas em desuso, roupas que não lhe pertencem, na verdade não pertencem mais a ninguém, apenas ficam ali esperando que algum “dono” venha buscar e retire o passado do seu presente.

Segura o choro, fecha as portas do guarda-roupa. Antes, porém, vê um terno azul de linho e lembra que quem o usava ficava bem naquela roupa. Olha, ainda, um pouco as camisas “lacoste” de listras, são lindas, mas não tem utilidade alguma, apodrecem dentro das gavetas. Uma caixa plástica transparente mostra o seu conteúdo: ali tem gravatas e meias, certamente as gravatas já não seriam usadas, pelo tempo já caíram de moda. As meias por sua vez, devem estar rasgando. O tempo é cruel, o salitre também, mas ela não se atreve a abrir a caixa, com certeza choraria mais.

Olha o frigobar, que, também, mostra as marcas do desuso e do tempo: esta todo enferrujando, com certeza, não deve mais funcionar, mas ali nada é tirado. Tudo fica ali como está. Só vai ao quarto mesmo para limpá-lo, nada mais, não aguentaria.

Fecha a porta do passado atrás de si, desce as escadas rumo ao presente, sabendo que não é bem assim, a casa fala a toda hora, lembra o que ela quer esquecer. Esta encurralada dentro dela, os seus sonhos foram congelados em seus cômodos. Os sonhos não seguiram os seus rumos, pararam no meio e o acordar lhe dá sensação de que nunca existiram, é como se uma névoa sempre estivesse ali pairando encobrindo tudo.

Nada mais existe, continua como uma estranha dentro da casa que não é mais a “sua casa”, até porque nunca a queria assim. Foi uma casa de dois, portanto nunca será a “sua casa”, tudo lhe mostra isto.

Está perdida entre as paredes procurando o mínimo de identidade com a sua própria vida. Não, não existe nada, tudo o que ali está é um passado que insiste em ser presente, um presente que ela quer que seja o próprio passado voltando, sabendo da certeza da impossibilidade.

Precisa sair dali, quer sair dali, mas não tem para onde ir, tem de se conformar, tem de tentar esquecer ali dentro das paredes que não a deixam viver, a sua vida atual é limitada pelas sobras do que um dia, naquela casa, se chamou felicidade.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

POEMAS

Todos nós temos um poeta dentro de nós, basta uma grande alegria, um grande felicidade, ou uma imensa dor, e a gente  resolve fazer poesia; umas muito boas, outras muito ruins,todavia, poesia.

Nasci par ter saudades

Parece que nasci para ter saudades!

Saudades de meus pais quando fui interna;

Saudades dos colegas quando sai do internato;

Saudades da minha infância quando virei adulta;

Saudades do primeiro amor quando ele se foi;

Saudades do meu filho quando ele partiu;

Saudades do meu amor quando ele deixou de me amar;

Saudades do dia em que conheci um outro amor;

Este, se foi para nunca mais voltar mesmo.

Saudades de você, que ainda hoje insiste em estar aqui

Dentro de um não saber de você que dói mais que a

Própria saudade.

Arembepe, Brasil, 2009



O que me fizeste

Não tens dimensão do que me fizeste

Tiraste-me o prazer de te saber meu

De te saber tão próximo que às vezes queria ter-te mais longe

Somente para cobrar a tua presença viva e forte

Não sabes o que me fizeste

Afastaste-me do amor real,

Vivo, quente, sentido,querido

Tenho agora só saudades

Saudades de ti, do corpo colado

Das tentativas do não amor

Ah! Se soubesses o que fizeste-me

Certamente procurarias um meio de desfazer a dor que me causaste

Me pegarias nos braços, me levarias para o aconhego,

E ficaria a meu lado como sabes que gosto, apenas ali, juntos,

Talvez de mãos dadas, apenas sentindo a presença um do outro

Escutando a respiração contínua, pausada, calma

Com a certeza de que se quer estar, nada mais que, “juntos”

Melides,Portugal, 2008



O que a tua falta faz

A tua falta me faz amarga,

Fria, agressiva, dura.

A tua falta me deixa seca, infeliz, feia.

Não acho graça da graça,

Não gosto de pessoas felizes,

Quero sombras, escuridão, infelicidade

Tudo isto faz parte do meu hoje,

Que não tem amanhã, pois não o quero,

Ele não me traz você, apenas me afasta do que amo

Melides, Portugal, 2008

domingo, 6 de fevereiro de 2011

2ª Vara de Família

Chegara ao fórum, como sempre, às 13h00min, hora normal para o começo do expediente, isto quando funcionava mesmo.

Começava sempre pelo andar mais alto, onde ficavam as varas da Fazenda Pública. Fazia assim, não só por ter poucos processos envolvendo questões fiscais, como também porque, como se diz: “para descer todo santo ajuda”.

Naquele dia tinha uma sensação esquisita: não conseguia se concentrar nas coisas, estava sempre divagando e pensando no companheiro. O que será que estava acontecendo, porque ele estava tão nervoso? Por que passara a semana anterior a questioná-la sobre os dias de audiência, os horários delas. Ele nunca fizera isto.

- Você vai ter audiência na terça feira à tarde? Qual a Vara? Quer que eu faça a audiência para você. Se quiser é só dizer.

- Não, não tenho audiência neste dia e, se tivesse, não deixaria você fazer, porque os processos são complicados e só quem esta acostumado com eles pode saber como conduzir as questões que possam surgir.

A semana passara rápido, o companheiro muito ansioso e preocupado.

Chegara a terça feira, ela, como sempre, foi para o escritório pela manhã levada pelo companheiro, que naquele dia se queixava: - “o meu distúrbio neuro-vegetativo está no auge”

É: era verdade mesmo, o suor frio lhe escorria das mãos. Estava tenso e nervoso. A tensão era tamanha que ela ficara calada todo o tempo enquanto se dirigiam ao escritório.

Vivia com aquele homem há uns bons 18 anos e ainda não o conhecia bem, embora passassem vinte quatro horas juntos. Trabalhavam juntos, almoçavam juntos, dormiam juntos, acordavam juntos, enfim, estavam sempre juntos, não que estivessem sempre um com o outro, mas juntos. Só se separavam quando um deles, por questões de trabalho, precisava viajar, ou em dias de sábado, quando o companheiro ia para o seu ritual semanal. “o baba da praia”. Se ele estivesse em sua cidade natal, nesse dia era infalível, não havia qualquer argumento ou compromisso, ele estava lá.

Já se acostumara tanto com isto que nem questionava nada. Compromissos no sábado, somente após o baba. Ia a praia com os filhos, mas ficava em uma barraca de praia bem longe do local onde ele jogava baba, sempre foi assim.

Já se encontrava no terceiro andar, Varas Cíveis e Comerciais. Um processo na 15ª. O Dr. de nome imenso com quatro sílabas não havia despachado, devia ser muito estafante ter um nome tão pesado. O processo já tinha mais de dois anos, parecia brincadeira; 14ª. – Não doutora, o doutor hoje não vem aqui, não está passando bem.

13ª. Processo concluso para julgamento. Data da conclusão, dezembro de 1984. O homem da gravatinha borboleta e bigodinho fino não fazia nada. Uma petição para o escrivão apresentar o processo para julgamento. O escrivão recalcitra, não queria se indispor com “o gravatinhas”, mas era impossível não receber o requerimento, caso contrário, ele também seria alvo de uma representação.

Era tida como uma “manga azeda”, pois nunca tivera medo de nada, embora tivesse o respeito e a amizade de muitos funcionários da Justiça.

Continua a descer, já está no segundo andar. Vai até a 8ª Vara, gostava do escrivão e dos funcionários. O escrivão, safadamente, lhe paquerava. Ela gostava disto, não lhe dava muita corda, mas gostava dos galanteios. Aliás, ficava mesmo era querendo entender aquilo. Pensava consigo mesmo: Será que este “sacana” não se olha no espelho? Um homem feio, baixinho, que pintava os cabelos, tinha alguma ilusão de que ela o olhasse de outra maneira, que não a profissional. Sorria, neste aspecto tinha jogo de cintura, deixava que ele pensasse que poderia ter uma chance. 7ª. Vara, o escrivão trabalhava com os filhos, um deles problemático e lindo

Na 9ª Vara tinha um juiz que era um poço de vaidade, grosseria e muitas outras qualidades negativas, inclusive falava alto e cuspia em todos quando falava mais alterado, o que era normal. Com ela, entretanto, tratamento “vip”, ela era sua colega em um curso de especialização em processo.

Já eram três da tarde. De repente lembra-se: poxa, tenho de ir à Vara de Família urgente, já tinha me esquecido que Mariana me pediu que procurasse saber a quantas andava o inventário de seu pai. Se não fosse agora não mais seria possível naquele dia.

Vai apressada. Passa pelos corredores do prédio antigo, sobe as escadas chega no segundo andar. O corredor esta cheio e ela segue para o seu destino. Ia falar com a “Roanda” uma daquelas escrivãs que sabem tudo, querem tudo, falam de tudo.

Passando pela porta de um dos cartórios, entretanto, pensa ter visto o seu companheiro, mas estava com pressa e não parou para ver se era ele mesmo. Falava com a Roanda quando parece escutar o nome do seu companheiro e o nome de uma amiga de uma sua irmã.

Pensa: que coincidência! Será que ele tá fazendo alguma audiência para a moça e não lhe disse nada, afinal ela estava se divorciando do marido, podia ser isto.

Sai do cartório e olha o corredor; ninguém, a não ser uma amiga do seu companheiro que não a vê. Ela não gostava muito da peça e, portanto, não tinha qualquer intenção de ser vista e falar com ela.

Continua falando com a Roanda, mas algo lhe futuca. – Saia aí, vá lá à sala de audiência da 2ª Vara de Família.

Acha engraçado este apelo; parecia que ela ouvia mesmo uma voz a lhe dizer isto, uma mão invisível a lhe empurrar. Vê o processo do inventário, faz algumas anotações e sai do cartório.

- Vá na sala de audiência da 2ª Vara. Sim, agora mais nítido ainda, uma voz lhe dizia isto.

Bom, não era todo dia que se ouvia uma voz de “ninguém” mandando fazer alguma coisa.

Vai. Abre a porta da sala:

Surpresa: De um lado o seu companheiro e um amigo comum advogado; do outro lado a amiga da sua irmã e uma advogada bem conhecida no meio forense.

Eles não perceberam a sua entrada.

Olha, mais atentamente, para ver se entendia a situação: O que estaria o seu companheiro fazendo ali, do lado direito da mesa de audiência, no lugar dedicado “ao réu” nos processos, quanto pior, numa vara de família, tendo, do outro lado, na posição do “autor”, a amiga da sua irmã.

Não estava entendendo nada, mas já estava ali dentro e tinha agora de saber o que estava acontecendo. Seu companheiro levanta a vista e vira para o lado onde ela se encontra. Toma um baita susto; fica lívido, branco, lhe olha apavorado, está visivelmente transtornado. O advogado lhe segura o braço firmemente, era como o controlasse para que ele não se levantasse.

A Juíza, percebendo a reação do senhor, olha na direção do olhar dele. O seu olhar encontra com o dela. – Olá doutora, como está a senhora? Todos se viram para ela, que também está pálida, prestes a ter um troço.

Tinha matado a charada. Do lado da mesa onde estava a amiga da sua irmã, junto da bolsa da advogada, estava uma pasta - INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE CUMULADA COM ALIMENTOS. AUTOR – uma pessoa com o nome parecido com o do seu neto, - RÉU - o nome do seu companheiro.

Responde ao cumprimento da Juíza, que também era sua colega no curso de especialização em processo. Tem muita dificuldade em manter a calma, a dignidade, a educação. Consegue, mas o seu corpo treme, a voz denúncia o seu estado de espírito.

Vira-se, pede licença, e sai da sala. Não sabe como conseguiu andar até a saída.

Segue em direção a escadas, desce os degraus como se estivesse caminhando para o nada. Não sabe aonde ir, o que fazer. O seu mundo desmoronou naquele instante. O seu luto começara, não tinha noção do que aconteceria daí para frente.

Alcança o hall de entrada. Ela que sempre achara lindo aquele hall suntuoso, hoje parecia não querer atravessá-lo para encontrar a rua, aliás, nem o via, talvez a única coisa que ligava os dois naquele momento era a frieza do mármore que revestia aquele salão. Estava destruída, arrasada, enlutada.

Pensa em voltar. Será que isto é um sonho? Pergunta a si própria. Eu vi isto mesmo? Não! Claro que não. Deve ser alguma confusão. Não pode estar acontecendo.

Vai andando sem rumo, desce a ladeira que vai dar muito longe do seu destino, aliás, um destino desconhecido, que até hoje, uns doze anos após esse episódio, ainda permanece assim.

- Olá doutora? Como está a senhora hoje?

Estou bem, estou esperando começar a audiência da 2ª Vara de Família.

- Não espere doutora. O Juiz hoje não virá. É domingo. E melhor a senhora tomar o seu café. Hoje é dia de visita e a senhora tem de estar bem bonita para receber os seus filhos...